Neonatologista baiana transforma dor em dignidade e amor: “O caminho é inverso” – Noticiário 24H

Em um país onde o sistema de saúde costuma tratar pacientes como números e não como vidas, a médica neonatologista Lilia Embiruçu, de Salvador, Bahia, prova que ainda há humanidade na medicina. Atuando no Hospital Geral Roberto Santos, Lilia criou sua própria forma de garantir que bebês natimortos ou prematuros extremos — que sequer chegam a conhecer o mundo — tenham ao menos um adeus digno.

Em vez de estatísticas frias e protocolos burocráticos, a médica de 65 anos tricota roupas minúsculas, confecciona caixões artesanais e cria rituais de despedida para os bebês que nascem sem vida ou morrem logo após o nascimento. Tudo feito com as próprias mãos — muitas vezes com restos de vestidos de noiva, retalhos e até com absorventes usados, quando não há mais nada que reste além da simbologia.

“Esses pais têm seu direito à parentalidade sequestrado. O luto precisa ser vivido — mesmo quando ninguém mais viu aquele bebê vivo”, declara Lilia.

Enquanto governos demoram décadas para aprovar políticas básicas de cuidados paliativos e luto parental, Lilia aplica, há anos, o que o Estado só agora começa a reconhecer como essencial: compaixão, presença, acolhimento.

Mini-caixões, gorros de crochê e despedidas improvisadas

Não é possível comprar roupas ou urnas funerárias para corpos tão pequenos. Então, Lilia decidiu produzir com as próprias mãos: gorros do tamanho de dois dedos, “sacos de dormir” de crochê e caixinhas com cetim branco, tudo feito artesanalmente. “Se for uma família católica, costuro até um mini terço”, diz.

Em alguns casos, onde o bebê sequer chegou a nascer vivo, o luto é ainda mais invisível aos olhos da sociedade. “Essa mulher se tornou mãe, e seu bebê já morreu. E ninguém reconhece isso. Ela não tem o direito ao luto, mas precisa viver com ele.”

Foi com essa visão que a médica, além da formação em cuidados paliativos, se formou também em capelania hospitalar laica, levando apoio espiritual independente de religião.

“Levei o mar até o hospital”

Certa vez, uma mãe pediu para que o filho internado na UTI pudesse ver o mar. Legalmente e logisticamente impossível. Mas Lilia resolveu.

Ela correu até um vidraceiro, explicou o caso, e exigiu que ele fizesse uma caixa de vidro naquele mesmo dia. Encheu com água salgada, areia, conchas, e levou até o leito. “A mãe chorou. Disse que o mar estava ali, com o filho. Era o que ela precisava.”

Transformar a morte em presença e memória

Ela também cria caixas de lembrança para as famílias: cartas, fotos, ultrassons, registros de batimentos cardíacos. E se nada disso houver, ela inventa.

Como no caso de uma mãe que recusou a foto do filho falecido — e tempos depois queria desenterrá-lo para vê-lo. “Eu sabia que não podia. Então fui até a polícia e pedi a um papiloscopista que fizesse um retrato falado do bebê, com base na descrição dos pais. E ele fez.”

Uma bússola moral em meio ao colapso institucional

Enquanto o Estado insiste em padronizar o luto e a medicina em protocolos impessoais, o trabalho da dra. Lilia mostra o que é cuidar de fato de um ser humano não apenas de um corpo.

“O biológico é importante, mas o biográfico é o que marca. O caminho é inverso”, conclui.

Seu exemplo deveria ser norma. Mas num sistema estatal que trata médicos como burocratas e famílias como estatísticas, sua atuação segue como exceção. Uma exceção que resiste, todos os dias, dentro das UTIs do Brasil.